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Artigos

WhatsApp e a transformação de produtos em serviços

Na semana passada, o WhatsApp tomou um passo que eu estava esperando
há muito tempo: passou a cobrar novos usuários por ano, e não mais uma
vez por aplicativo vendido (já era assim no Android e passa a ser assim
também para o iPhone). Ou seja, o WhatsApp, um dos meus aplicativos
favoritos, não é mais um aplicativo; é um serviço.

Por que fazer isso? Ben Thompson resumiu, ao dar o exemplo do
Paper:

The problem for Paper is the same for all productivity apps in the App
Store: there is no way to monetize your existing users.

O mercado de vendas é naturalmente instável. Uns mês se vende mais, nos
outros menos, e posso imaginar a dificuldade que é para um negócio
baseado em vendas manter o fluxo de caixa. Entretanto, o mercado de apps
tem particularidades, baseadas no fato de que usuários geram receita de
maneira discreta e gastos de maneira contínua
. Uma vez que alguém
compra um aplicativo, essa pessoa nunca mais vai dar dinheiro para a
empresa (já que um aplicativo não estraga, e portanto não precisa ser
substituído) e vai continuar exigindo que seus emails sejam respondidos
e que os bugs sejam consertados.

Por exemplo, quando você compra um carro, continua dando dinheiro para a
concessionária com revisões, acessórios etc. A cada vez que você quer
que algo seja melhorado, tem de pagar. Combinado com os altos preços,
isso mantém o mercado de carros — e de computadores, de
eletrodomésticos, …

Numa outra categoria, existem aqueles produtos que são gastos numa
escala relativamente rápidas: comida, roupas, materiais de escritório.
Num determinado instante de tempo, alguém há de precisar disso. É
fácil manter o fluxo de consumo.

Quando alguém comprava o WhatsApp, dava um dólar para os desenvolvedores
(na verdade menos, tirando a fatia da Apple), e ficava usando os
servidores indefinidamente para trocar mensagens. E os próprios
criadores, que vieram do Yahoo, já deixaram claro que não querem
usar anúncios para gerar receita. É claro que esse negócio não era
sustentável.

Pagar pelo direito de usar

Ultimamente serviços que cobram taxas periódicas por acesso ao serviço
(e não apenas por produto vendido) vêm crescendo; são os serviços de
assinatura, ou subscription-based. O caso típico é o Netflix: você
paga uma taxa mensal e vê quantos filmes quiser (mas apenas enquanto
pagar). Você não possui mais nenhum filme, e sim o direito de assitir
ao catálogo. Na música, temos o Rdio; para audiobooks, Audible.

O mercado de apps também tem visto essa tendência. Veja o Nozbe, um
sistema GTD na nuvem. E como Thomson colocou, temos o Office e a
Adobe que transformaram seus produtos em serviços. Você paga
continuamente pela comodidade de ter seus dados sempre disponíveis. E
agora o Whatsapp fez o mesmo.

É simples. As empresas mantém toda uma infraestrutura, armazenamento,
streaming, aplicativos de acesso, e você continua pagando enquanto usar
os recursos.

Nem todo programa precisa fazer essa transição (caso contrário veríamos
pedidos de falência diariamente). Alguns apps simplesmente não fazem
sentido como um serviço, ou o fluxo de caixa é suficiente para sustentar
uma equipe pequena (digamos que o produto seja muito bom e novos
usuários continuam o descobrindo). Mas acho que não seria exagero que
nos preparemos para mais exemplos desse tipo.

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Resenhas de livros

Resenha: Platform

Platform: Get noticed in a noisy world foi o livro que me motivou
a lançar FabioFortkamp.com.

Eu não consigo me lembrar de como ouvi falar de Michael Hyatt. Só
sei que comecei a ler o seu blog e vi muitos textos interessantes.
Artigos sobre liderança, dicas de produtividade, tutoriais de apps. O
tipo de conteúdo que me interessa, definitivamente. E o melhor: ele tem
experiência prática, pois foi CEO de uma grande editora por muitas anos,
então entende de liderança, aplicou os métodos de produtividade e
usa os programas que recomenda.

Muitos dos textos são sobre ferramentas digitais: blogs, Twitter,
Facebook… No papel de um executivo que abraçou as redes sociais, Hyatt
tem muita informação a compartilhar. E resolveu reunir esses conceitos
num livro, não sobre cada ferramenta individual, mas sobre a ideia
global de uma identidade digital.

A frase que resume a filosofia por trás da obra é essa:

For all practical purposes, privacy is dead. Via Google, people can
find out more about you in ten minutes than was possible in a lifetime
ten years ago. You might as well intelligently feed the Google search
engines with what you want people to know about you. You need to be
smart about it but you are in control.

Isso não deve ser desculpa para não nos preocuparmos com a privacidade,
mas ele tem um ponto. Por mais cuidadoso que você seja, sempre há um
jeito de encontrar informações sobre você; então, por que não criar
você mesmo a sua identidade?

Um modelo

Eu sou engenheiro, e engenheiros gostam (supostamente) de modelos. Um
modelo é uma maneira de descrever a realidade. É uma abstração, uma
simplificação que simplica os trabalhos de lidar com a realidade.

No caso, a realidade é a nossa presença na internet. Como interagimos
com a web? Um rápido brainstorming revela muitas opções:

  • Blog ou site pessoal
  • Blog ou site de outros
  • Redes sociais (Twitter, Facebook, App.net etc)
  • Serviços de fotos (Instagram, Flickr)
  • Serviços de vídeos (YouTube, Vimeo)
  • Fóruns
  • Lojas virtuais
  • Sites de jogos
  • Sites de notícias
  • Sites diversos

Hyatt então se propõe a responder à pergunta: “como podemos utilizar
todas essas opções a nosso favor?”

A resposta envolve um modelo, a plataforma do título. Não vou explicar
o modelo em detalhes porque esse é o objetivo do livro, mas a ideia é
usar um site pessoal, as redes sociais e alguns outros tipos de site de
maneira consistente, fazê-los funcionar conjuntamente. Ele dá dicas de
como usar cada serviço e de como integrá-los; essa integração é o
diferencial do livro.

O que você tem a dizer

O modelo de plataforma se aplica tendo em mente pessoas que tem algo a
dizer ou vender (como anunciado na capa do livro). Como o próprio autor
escreve:

There are two critical parts of the success equation: a compelling
product (the what) and a significant platform (the who).

É isso. Antes de criar a sua plataforma você tem de pensar sobre o que
você quer divulgar. Talvez você goste de tirar fotos e quer algo mais
profissional que o Instagram. Ou talvez você seja um administrador que
tem algumas ideias mais modernas e quer que seu empregador as entenda
antes de contratá-lo. Ou você escreveu um livro e quer compartilhar
textos sobre as motivações que o levaram a escrevê-lo, ou os autores
mais influentes para você. Ou você é um estilista que quer divulgar seus
desenhos. Ou você é uma pessoa qualquer que gosta de escrever.

Hyatt dedica a primeira parte do livro a falar sobre criação de
produto
. Ele fala claramente que esse não é o assunto do livro, o que
me leva a questionar a presença desses capítulos, que acabam sendo
superficiais demais. Por exemplo, Hyatt cita Steve Jobs e o lançamento
do iPhone como exemplo e caso de sucesso sobre lançamento de produto. Eu
até concordo, mas acho que 1) falar do iPhone como exemplo de lançamento
de produto já se tornou meio clichê e 2) Jobs era uma pessoa bastante
peculiar (no bom e no mau sentido), impossível de ser imitada.

Esqueça o hype da Apple (e o autor mesmo confessa ser um ardoroso
Apple fan) e as dicas de auto-ajuda (coisas do tipo “olhe no espelho e
veja quem você é”) dessa parte do livro. Se você ainda não criou o seu
produto, e precisa de ajuda, existem muitas obras mais apropriadas (no
final de Platform o autor inclusive dá dicas de alguns).

Um manual com uma teoria embutida

As outras partes do livro são mais valiosas. Partindo do pressuposto que
você já sabe sua mensagem, já tem o seu produto (mais ou menos) na
cabeça, ele traz uma abordagem passo a passo bastante intuitiva. Dá
dicas práticas e explica o raciocínio. Fala de como escolher o seu
domínio (como FabioFortkamp.com), como configurar seus perfis nas
redes sociais, como escolher um sistema de blogs, como planejar seu site
(“the single most important branding tool you can have“).

Tudo com muitos exemplos práticos. Dicas, dicas e mais dicas.

Por exemplo, o autor dedica um capítulo com orientações para sua foto de
perfil, e suas fotos em geral. Na primeira vez que li o livro, não me
preocupei muito com isso; porém, depois comecei a analisar outros blogs.
E, realmente, a foto chama atenção. Você começa a ler os textos
imaginando aquela pessoa escrevendo. Mais importante, você se torna uma
pessoal real; se você tem uma mensagem, você precisa se expor. Leia esse
capítulo com atenção.

Outro capítulo interessante envolve considerações sobre tamanho de posts
no seu blog (e Hyatt recomenda fortemente você manter um, por mais
simples que seja). Os meus textos são muito mais longos que o
recomendável por ele, mas eu entendo seu argumento: você precisa
procurar o seu meio termo entre “curto e superficial demais” e “longo e
demanda muito tempo”.

E mais dicas práticas. Sugestões de aplicativos para cada tarefa.
Cuidados ao lidar com comentários.

É aí que Platform realmente brilha: é um manual de como criar sua
plataforma, onde cada passo é explicado com um raciocício lógico.

Exagero

Existem algumas partes que são bastante exageradas. Hyatt é um executivo
de sucesso; ele tem dinheiro para criar uma plataforma realmente
profissional. Mas ele poderia simplificar em muito o seu método para
quem está começando. Embora ele argumente que todos temos a
oportunidade de garantir nossa presença na web, ele parece não
contemplar uma classe na qual me incluo: estudantes ou profissionais em
início de carreira, pessoas que querem começar a montar a sua
plataforma mas não tem tanto dinheiro assim. Hyatt parece dizer: “ou
você contrata toda uma equipe, o melhor web-designer, o melhor
fotógrafo, o melhor serviço de web-hosting, usa os melhores programas,
ou então você nunca terá sucesso”.

Essa mentalidade pode atrasar ou encarecer em muito a sua plataforma.
Você não precisa escolher tudo do mais barato e simples, também. Pegue
uma foto sua decente (preste atenção nas suas dicas), escolha um
conjunto de programas que faça o serviço, e o sistema de blogs mais
simples, e crie. Aos poucos você vai melhorando alguns aspectos.

Além de algumas partes exageradas, o livro tem alguns defeitos gerais.
Por exemplo, claramente o autor reaproveitou textos do seu blog (o que
não é nada errado), em vez de criar o livro do zero. O problema é que
algumas partes são bastantes repetitivas, o que é característico de um
conjunto de textos independentes, em vez de um livro único.

Além disso, Hyatt advoga fortemente em transformar seus textos em listas
(“10 razões para ter comentários”, “20 dicas de Twitter” e por aí vai).
Segundo ele, faz os textos ficarem mais legíveis. Eu concordo, mas isso
vem acompanhado de uma sensação de superficialidade. Gosto quando os
autores desenvolvem suas ideias em parágrafos tradicionais. É mais
difícil, mas, para mim, fica melhor.

Se você concorda comigo, cuidado. Platform é recheado de listas. A
única categorização que faz sentido é sobre os tipos de títulos; por
exemplo, existem os óbvios (“Fulano de tal: uma biografia”), os que
fazem uma promessa (“Como perder 10 quilos comendo chocolate todo dia”)
etc. Eu nunca havia parado para pensar nisso.

Você deve ler!

Apesar desses defeitos, Platform é um livro excelente. Você
encontraria muita informação de graça, provavelmente, mas a reunião de
textos correlacionados reunidos convenientemente em torno de um modelo
simples ajuda bastante.

Se você absolutamente não se importa em controlar sua presença na web e
só quer usar o Twitter e Facebook como passatempo, não se incomode em
ler.

Porém, se você acha interessante a ideia de se promover usando essas
ferramentas e quer começar um blog mas não sabe como, esse texto lhe
será muito útil. É um grande motivador.

Aliás, mesmo que você ache que não precisa, leia o livro para ver os
pontos que o autor chama a atenção sobre identidade e privacidade. Mesmo
que você não tenha pretensão profissional, você acha que aquela sua foto
de perfil fantasiado para o carnaval ou aquele seu endereço de email
joao_comedor@hotmail.com realmente acrescenta alguma coisa?

Lembre-se: a privacidade na internet está em extinção. Detalhes menores
estão públicos a todo mundo. Mantenha o controle.

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Resenhas de apps

Day One: benefícios de manter um diário

Se eu fosse fazer uma resenha tipicamente Apple, eu diria que Day
One
é um app elegante, com um design minimalista, com cada pixel
muito bem pensado. Um app muito cool, portanto.

Interface Mac Day One

Agora ao que realmente é importante: Day One é um pequeno programa que
teve um grande impacto na minha vida, por ser um grande facilitador à
escrita pessoal. Claro, um app bonito é agradável, mas é a experiência
de uso
que importa.

O melhor ouvinte do mundo

Pela sua descrição, Day One é um journaling app – um app para escrever
um diário, em resumo. É um editor de texto básico, com suporte a
Markdown, mas onde você armazena seus textos num calendário e não em
pastas (como num editor comum).

A minha entrada é de 1 de janeiro de 2013, o que leva o leitor à correta
conclusão de que manter um diário era uma resolução de ano novo. Eu
achava que ia manter minha memória, que ia ler esses relatos daqui a dez
ou vinte anos, e suspirar para meus filhos “those were the times…”.
Claro, isso depois de muitas noites registrando o dia, por muitos anos.

Por curiosidade, olhe como foi essa primeira entrada:

Primeira entrada no Day One

(Sim, eu escrevi em inglês, não me pergunte por quê).

Eu logo percebi que isso é tolice. Os momentos são valiosos no instante
em que acontecem. É por isso que não vejo sentido em pessoas que filmam
e fotografam shows (e protestos). Em vez de aproveitar o que está
acontecendo, naquele instante, elas querem guardar para o futuro. Não
seria mais fácil se preocupar com o agora?

Um diário é um ouvinte – o melhor do mundo, provavelmente. Você deve ter
uma conversa com seu diário. E um ouvinte real está pouco interessado no
que você fez no dia. Ele quer saber suas opiniões e seus pensamentos.
Ele não quer ouvir “fui numa festa muito legal”; ele quer saber o que
fez a festa ficar tão boa. Ele também quer saber daquela frase que você
ouviu que chamou a atenção. Ou daquele livro que você adorou.

Um diário é uma maneira de você organizar seu cérebro. E o melhor: você
pode escrever o que você quiser. Shawn Blanc (autor de um excelente
blog sobre tecnologia
que você provavelmente deveria ler) disse
bem
:

As a writer, I believe journaling on a regular basis is critical. It’s
writing that will never be judged. It’s writing that doesn’t require
an editor. It’s the only place where I am completely free to write for
my truly ideal reader: a future me. I have my own inside jokes, my own
running story arc, my own shorthand. I love the freedom to write
whatever I want, however I want, with no need to make it tidy or clear
or concise. And I have no doubt that it makes me a better professional
writer.

Alguma dúvida de que FabioFortkamp.com me fez ficar ciente da
importância do diário?

Como tirar melhor proveito do Day One

A minha regra de uso é: se está na minha cabeça, e se não é algo
estritamente técnico (relacionado ao meu mestrado, ou à configuração
deste blog, por exemplo), vai parar no Day One. Eu pego o iPhone e
começo a digitar (ou, melhor ainda, uso o excelente Drafts). Ou, no
Mac, ativo a entrada rápida (um atalho de teclado e o programa abre uma
pequena tela pronta para receber seu texto).

(Repare que isso é bastante ligado ao princípio de ter “a mente como
água”, fundamental na produtividade pessoal, conforme já escrevi.)

Por exemplo, esses dias, depois de levar meu carro à revisão, e ter de
escutar o vendedor me oferecer mil serviços provavelmente inúteis, um
pensamento me surgiu:

Entrada rápida do Day One no Mac

Simples. Na hora em que o pensamento me ocorreu eu já digitei.

No iOS, se você quiser digitar no próprio app você tem uma tela bastante
simples:

Entrada no Day One do iOS

Como falei no início, o aplicativo é realmente muito bem desenhado, mas
isso só reforça a facilidade que é escrever. Num app de diário, como
esse, o usuário deve ser capaz de registrar algo rapidamente.

O Day One, assim, se tornou um repositório de muitas ideias e
pensamentos. Por exemplo, há alguns dias falei da busca por nossa
identidade
. Antes de escrever aquele texto, eu quis fazer um
brainstorming de todos os interesses meus. Quer ver?

Brainstorming de ideias no Day One

Ou quando eu pensei muito sobre o foco de FabioFortkamp.com:

Foco de FabioFortkamp.com no Day One

Day One é também uma excelente maneira de passar a raiva. Quando algo
desagradável acontece, eu imediatamente explodo para o app. Descarrego
mesmo, com xingamentos e tudo. Muito melhor que fazer isso com uma
pessoa, o leitor há de concordar comigo.

Mais features

Agora, para mais alguns detalhes técninos do app (que são apenas
detalhes). Por exemplo, embora eu não use muito, por preferir texto, o
Day One tem um bom suporte a fotos:

Foto de Ratones no Day One

Tem também suporte a geolocalização (incluindo integração com
Foursquare), o que faz com suas entradas fiquem com a localização
embutida. Inclusive, se você quer usar o Day One como um diário
tradicional, o aplicativo se transforma numa interface mais pessoal ao
Foursquare. Ao jantar, assistir um filme, passear etc você cria uma nota
no aplicativo e faz check-in automaticamente. Como falei, não é útil
para mim, mas consigo ver muita gente tirando proveito disso.

Há também suporte a tags, para organizar suas notas (por exemplo,
#jantares, #festas, #pensamentos). Eu uso poucas porque gosto de
manter as coisas simples, mas ajuda a fazer uma revisão dos seus textos.

Para mais informações

Como usual, Federico Viticci escreveu uma review muito mais
detalhada que o leitor deve conferir. E Tulio Jarocki lançou uma série
fantástica
sobre o aplicativo, que me fez querer voltar a usar o app
(depois de ficar cansado de apenas relatar minhas experiências).

Day One está disponível para Mac (e ganhou o prêmio de App of the Year
2012
) e iOS (e está de graça por tempo limitado para comemorar os 5
anos da App Store).

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Resenhas de livros

Resenha: A Arte de Fazer Acontecer

Se eu fizer uma lista dos 5 livros mais importantes que já li, eu teria
um bocado de trabalho escolhendo 4 deles. A Arte de Fazer Acontecer,
de David Allen, teria de estar lá.

Eu li esse livro na edição portuguesa (lançada com o título de Fazer
Bem as Coisas
, na época em que eu morava em Portgual, mas linkei
para a edição brasileira para o leitor ter mais fácil acesso e porque
acredito que a mensagem é independente da linguagem.

O livro de David Allen é conhecido no mundo todo por ter introduzido o
método GTD, ou Getting Things Done (por isso é fácil ver a obra ser
chamada de GTD book ou algo assim), provavelmente o mais famoso método
de produtividade pessoal. Este não é um post sobre GTD, e sim sobre
o livro, mas vou tentar introduzir o leitor no assunto.

A filosofia GTD

Allen começa o livro introduzindo o leitor ao conceito fundamental do
método: a nossa mente é feita para executar tarefas, e não para
guardar informação, e precisamos gerenciá-la para garantir isso.

Para o autor, o gerenciamento do tempo não existe, pois todos temos 24
horas por dia. Não podemos fazer 5 minutos durarem mais que isso.
Podemos, sim, controlar a nossa atenção, o nosso foco, as nossas
prioridades.

Nossas vidas contêm muitas áreas de interesse. Se você está sentado para
escrever um relatório pensando nas compras de Natal, você está perdendo
tempo. Você não está terminando seu relatório e nem comprando os
presentes. A preocupação está consumindo sua energia.

Ao longo da primeira parte, o autor escreve a toda hora sobre a
importância de ter a “mente como água”, de “gerenciar a informação”, de
ter a “mente sob controle”. Seu estilo é bastante claro, direto, e sua
ênfase nos pontos cruciais ajuda a guiar o leitor. Allen também
demonstra gosto por citações motivacionais que pouco acrescentam à
mensagem do livro, mas servem como ilustração (com algumas exceções de
mensagens realmente boas, como a frase de Horácio “Governe a sua mente
ou ela o governará” ou o provérbio grego “O início é a metade de todas
as ações”).

A mente é ruim para armazenar e acessar informação; o autor inclusive
usa um exemplo interessante. Se a sua mente tratasse informação de
maneira verdadeiramente inteligente, você automaticamente lembraria de
tudo que tem de comprar cada vez que entrasse numa loja. Ou então pense
no seguinte (exemplo meu): já notou o esforço que você tem de fazer para
lembrar do nome de um livro? A sua mente não propicia um mecanismo de
acesso. Numa analogia muito interessante, Allen compara o cérebro à
memória RAM: de curta capacidade, ótimo para memórias recentes e
aleatórias. Seu cérebro não é um disco rígido (ou um SSD, num exemplo
mais atual).

O grande problema é que, quando você usa a mente para isso (armazenar
informação), você tende a ter a necessidade de executar suas tarefas no
momento em que elas chegam à sua cabeça. Você está concentrado em algum
projeto quando um colega chega e pede um documento. Você pára tudo que
está fazendo e busca o documento. Quando volta ao projeto, já perdeu
toda a linha de raciocínio. E esse tipo de situação ocorre dezenas de
vezes por dia.

Você precisa de um sistema.

O método GTD

Depois de explicar e ilustrar os conceitos fundamentais (controle,
gerenciamento de informação, ansiedade, preocupações), Allen expõe o seu
método. É a sua solução ao problema do gerenciamento da mente.
Basicamente, o princípio é separar a ação da organização.

Quando você está fazendo algo, seja relacionado ao seu trabalho (como
preparar uma apresentação) ou à sua vida pessoal (como montar um
armário), você se concentra nisso. Quando chega uma interrupção, você
não pára e parte para outra atividade. Você anota a pendência numa
caixa de entrada e continua o seu trabalho.

Ao longo de um dia, você vai acumular muitas pendências – resultados de
interrupções, lembranças que vieram à sua mente, emails, pedidos do
chefe, telefonemas. Então, periodicamente (sem interromper seu
trabalho), você separa um tempo para organizar essa informação. Eventos
com horas marcadas vão para o calendário. Ideias e tarefas que não podem
ser realizadas agora vão para uma lista apropriada (por exemplo, você
mantém uma lista dos idiomas que quer aprender). E coisas mais imediatas
são divididas em subtarefas, com ênfase na próxima ação que você tem
de executar. “Comprar um presente” é algo bastante genérico; “pesquisar
o preço daquele livro” é algo mais simples e que pode ser feito em
poucos minutos, e que ajuda na tarefa da compra do livro.

Quando você estabele uma rotina de organização (por exemplo, todo dia,
após o trabalho, você organiza todas as suas pendências), você cria um
sistema de confiança. No exemplo anterior, ao receber o pedido de um
documento do seu colega, você não pára para procurar o documento; você
toma 5 segundos para simplesmente anotar esse pedido. Na sua revisão,
você adiciona esse pedido à lista de tarefas. Na próxima ocasião em que
você estiver concentrado nas suas tarefas, esse pedido acabará sendo
executado.

A lista de próximas ações ajuda também a livrar a mente da tarefa de
decidir. No seu horário de trabalho, você se dedica simplesmente a
fazer; você não perde tempo pensando o que deveria fazer porque está
tudo numa lista que você está seguindo. Lembre-se: você não deve gastar
seu tempo e sua concentração se organizando. Você deve separar um
pequeno tempo para manter o seu sistema, de maneira a usar a maior parte
do seu dia para produzir.

Como falei, não quero descrever o sistema GTD em detalhes porque isso
seria prestar um desserviço ao livro. Meu objetivo é incentivar o leitor
a lê-lo. O que posso adiantar é que o método descreve muitos outros
aspectos, por exemplo:

  • Como organizar seus projetos (e a definição de projeto do autor é
    muito interessante)
  • Como gerenciar tarefas que precisam ser delegadas a outros
  • Como separar tarefas imediatas (“Ligar e marcar revisão do carro”) e
    futuras (“aprender francês”)

Outro ponto muito positivo de A Arte de Fazer Acontecer é que ele
salienta o tempo todo que não existe a ferramenta universal para aplicar
o método; cada pessoa deve achar a que melhor se adapta ao seu estilo.
Você pode manter as suas listas num caderno simples ou num aplicativo
altamente sofisticado; pouco importa. E não vou nem dizer qual sistema
eu uso nesse texto para me manter fiel a essa postura do livro. Num
futuro post talvez eu explique o meu sistema.

O autor é bastante didático, abusa de exemplos (e a sua alternância
entre casos profissionais e pessoais ajuda muito) e usa muitos diagramas
explicativos. Não é difícil entender porque esse livro se tornou um
sucesso.

Como esse livro me ajudou

Eu tenho uma atividade “profissional” principal, que é meu mestrado em
engenharia. Tenho projetos pessoais: esse blog, um romance que estou
escrevendo (!), coisas que quero aprender. E tenho tarefas regulares:
comprar presentes, gerenciar minhas finanças, cuidar do carro. Tarefas
mundanas mas que precisam ser feitas.

Eu não vivo para isso, e acredito que ninguém o faça. As melhores coisas
da vida são os momentos em que estamos em companhia das pessoas
importantes ou em que estamos fazendo coisas que nos dão prazer:
caminhando na praia, lendo um bom livro, rindo de um filme.

Ser organizado, e ter um sistema como o GTD como guia, permite-me
aproveitar esses momentos. Durante a semana, eu sigo a minha lista de
tarefas e avanço nos meus projetos, e, a cada dia, eu tomo um tempo para
me organizar. “Tudo bem, hoje terminei o relatório; o que preciso fazer
amanhã?”. “Sempre quis começar um blog; vou dedicar um tempo essa semana
para pesquisar opções de hospedagem”. “Meus exames chegaram; deixe eu
anotar o telefone do médico para marcar o retorno.”. A ênfase do livro
de anotar tudo mudou completamente meus conceitos de organização.

Eu posso passar o fim de semana todo fazendo o que gosto porque sei que,
quando a segunda-chegar, a minha lista de próximas ações vai estar
atualizada, meu calendário vai estar configurado e meus projetos vão
estar encaminhados. O meu sistema de confiança está funcional. Todas as
minhas pendências estão em algum lugar, livrando a minha mente.

E isso é a melhor parte de ser produtivo.

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Por que usar uma balança na cozinha

Na última edição de The Magazine, Joe Ray escreveu esse excelente
artigo sobre a importância de se usar medidas baseados na massa, e não
no volume, dos ingredientes de receitas culinárias. Segundo ele, isso
torna as receitas muito mais reprodutíveis, além de necessitar apenas de
uma balança (em contraste com um conjunto de
medidores-colheres-tigelas).

Se o leitor não se importar, deixe eu acrescentar um pouco de
termodinâmica à sua explicação. Vocês sabem, coisas de engenheiro.

O principal argumento a favor de usar a massa e não o volume como
referência é que, pondo de maneira simples, a massa é uma medida
absoluta
da quantidade de matéria, enquanto que o volume é uma
propriedade termodinâmica. Quando você diz “1 kg de água”, isso quer
dizer a mesma coisa aqui, no Japão e na Estação Espacial Internacional.
Com essa informação, é possível saber exatamente a quantidade de
moléculas de água. Um quilograma é um quilograma, definido conforme o
padrão internacional (que está variando). Porém, “um litro de água”
não é nem de longe tão preciso. O bom engenheiro, ao ler uma receita que
pede um litro de algum líquido, imediatamente se pergunta: “a que
pressão e temperatura?”.

Considere uma garrafa de água colocada no congelador. A garrafa estufa
e eventualmente estoura. O seu volume aumentou, sem que você tenha
adicionado água. Ou seja, o volume não indica de maneira precisa quanto
de água há.

É claro que essas variações de volume da água (e da maioria das outras
substâncias usuais na cozinha) em relação à temperatura são pequenas
nas condições ambientes (caso contrário haveria erros grosseiros), mas
existem três agravantes:

  1. Os pequenos erros (aqui entendidos como a diferença entre a
    quantidade correta de um determinado ingrediente que a receita
    pede e aquele que você efetivamente adiciona, baseada no volume) dos
    diversos ingredientes se somam
  2. A medição de volume é bastante subjetiva (você tem de comparar um
    risco num copo com o nível do líquido) enquanto que com uma balança
    digital você lê diretamente o valor
  3. A medição de volume de pós é altamente dependente da quantidade de
    ar entre os grãos. Experimente medir duas xícaras de farinha antes e
    depois de sacudir o recipiente

O uso de uma balança na cozinha surte mais efeito em receitas que exigem
maior controle, como o autor mesmo fala. Mas isso não quer dizer que
você não possa se beneficiar.

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Artigos

O Primeiro Rascunho

Ernest Hemingway:

O primeiro rascunho de qualquer coisa é uma merda.

É difícil haver uma frase que tenha causado tanto impacto na minha vida
profissional e que seja tão verdadeira.

O perigo de escrever e editar ao mesmo tempo

Na escola, as professoras de Redação (perdão, Produção Textual), sempre
advertiram: “faça um rascunho, e só depois passe a limpo”. Eu, bom aluno
(leia: puxa-saco) que sempre fui, seguia religiosamente esse conselho.
Fazia o rascunho (a lápis) e depois passava a caneta. E o processo,
embora funcionasse, parecia ineficiente. Na minha cabeça, eu demorava
tanto tempo que, quando eu terminava o rascunho, o texto já estava bom.
Parecia que eu poderia ter escrito o texto todo a caneta. O que havia de
errado?

Simples: o meu rascunho era muito bom.

Eu escrevia um parágrafo e editava. Parava, achava que ficava ruim, e
melhorava, e passava para o próximo. Voltava e mudava um trecho. Assim
por diante. Claro, no final, o texto já estava pronto. Passar a caneta
era só perda de tempo.

Isso é altamente ineficiente. Um rascunho é um rascunho, não é para ser
editado antes de ficar pronto. Muito melhor seria escrever o texto todo,
em uma só vez. Quando eu tivesse uma noção do que o texto final seria,
ficaria muito mais fácil consertar alguns trechos. Hoje em dia, eu
realmente faço rascunhos (mas não mais a mão). A primeira versão dos
textos de FabioFortkamp.com são deprimentes (não que as versões
finais sejam muito boas). Quando eu vejo uma tela em branco, é uma
oportunidade para descarregar completamente minhas ideias. “Parar e
pensar” é algo que não me permito.

Num dia desses, por exemplo, eu sentei e escrevi um capítulo da minha
Dissertação. Um capítulo inteirinho, enquanto esperava uma simulação ser
completada (se você acha que seu computador é lento ao visualizar aquele
PowerPoint, experimente trabalhar com solução de equações diferenciais
acopladas). “Uau, Fábio. Se a sua dissertação deve ter em torno de 5
capítulos, como usual, quer dizer que você escreveu 20% da sua
Dissertação em uma manhã? Qual o seu segredo?”

O meu segredo é que esse capítulo está uma merda. Não é a versão final,
que vai ser defendida. Se eu mostrar isso para o meu orientador, ele vai
rir de mim. É um rascunho. Tem erros de português, erros de gramática,
frases mal construídas, referências não conferidas. Mas ele está ali. Eu
agora tenho claro o que eu preciso escrever, sei das coisa que preciso
abordar. Depois ele vai ser reescrito. E aí é que está a mágica: o tempo
de fazer um rascunho rápido, mais o tempo de reescrita, é menor que eu
tempo de escrever e apagar parágrafo por parágrafo (já que não há tantas
interrupções). Além de que o texto final fica muito melhor.

Essa ideia pode ser extendida a muitos aspectos da nossa vida. É um
conceito bastante comum e que chamo de desenvolvimento iterativo (não
confundir com interativo).

Estimar e refinar

A melhor definição de iteração vem de um (excelente) professor meu:

Um problema iterativo é aquele cuja solução depende da solução.

Esse conceito é bastante comum na computação e na matemática. Por
exemplo, se você quer achar a solução de x = cos(a), onde a é
conhecido, é fácil. Você sabe a, calcula o cosseno e diz que x é
esse valor. E qual a solução de x = cos(x)? Qual o número que é igual
ao seu cosseno?

Como não existe solução algébrica (não existe nenhuma “fórmula”
fechada), nós usamos um procedimento iterativo. Você começa com um
resposta errada; você sabe que tem de ser entre 0 e 1 (pela definição de
cosseno). Suponha então que seja 0,5, o ponto médio. O cosseno de 0,5 é
0,877583. Esses valores são diferentes, então 0,5 não é igual ao seu
cosseno. Você tenta de novo, usando o novo valor (0,877583) como
estimativa. O cosseno disso é 0,639012, portanto esse novo número também
não é igual ao seu cosseno. Você tenta com o resultado mais recente,
cujo cosseno é 0,802685. E assim por diante, até chegar a 0,739085, cujo
cosseno é… 0,739085. Resolvido.

Essa técnica de estimar e refinar é extremamente usada nas ciências
exatas (embora existam muitas maneiras de refinar um resultado, e a que
eu mostrei não é a mais eficiente), e é a única maneira de resolver
muitos problemas (pelo menos com o nosso conhecimento matemático atual).
Muitas vezes é a maneira mais fácil (lembrando que todos esses cálculos
são resolvidos por um computador em um tempo menor que o que você leva
para dizer “não entendi nada”).

Na nossa analogia literária, você só pode escrever um texto bom ao menos
que saiba o que quer dizer. Mas para saber o que dizer, você tem de ter
escrito alguma coisa (a não ser que seja um gênio que tem o texto
pronto na cabeça). Assim, você começa com uma versão preliminar, e vai
refinando. É muito mais fácil que escrever algo notável do zero.

Vale para qualquer trabalho criativo – e sim, matemática é uma área que
demanda criatividade.

Um outro exemplo pessoal: o meu tema de Mestrado envolve alguns cálculos
termodinâmicos não muito simples. A equação de estado é complicada, o
sistema está sempre em movimento, existe transferência de energia e
massa e mudança de fase. E o meu primeiro cálculo ignorou quase todas
essas complexidades. Os gases são ideais, a temperatura é constante, o
sistema está parado. Consigo calcular o que me interessa? Consigo. E se
calcular a temperatura (usando uma equação apropriada), em vez de
considerar constante, consigo? Consigo, porque os erros da primeira
parte foram todos corrigidos. E se usar uma equação de estado melhor? E
se considerar a velocidade? E se…

A cada refinamento, a cada iteração, o meu trabalho está melhor porque
eu já eliminei todos os defeitos da versão simplificada. Se eu tivesse
começado com o problema completo, no primeiro erro de cálculo eu não
saberia nem onde procurar o erro.

Eu não tenho experiência com isso, mas consigo imaginar que todo
arquiteto começa uma casa como um quadrado com uma porta. Um músico
começa o novo hit com dó-re-mi. Um advogado começa o seu documento com
“Querido juiz, meu cliente é inocente.”. E por aí vai. O importante é
ter uma primeira versão, um primero rascunho.

O leitor não concorda?

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Por que os engenheiros aproximam

Existe uma piada muito boa que fala de um grupo de especialistas a quem
foi perguntado “quanto é 2 + 2?”.

O matemático disse que era 4, por definição.

O físico rebateu: “Depende. Escalar ou vetorial?”.

O estatístico respondeu: “Com probabilidade de 95% está entre 3 e 5”.

O engenheiro concluiu: “Põe 5 que dá certo”.

Calma lá, rapaz. Permita-me defender os meus colegas.

Entre a aproximação e o erro

Primeiro, temos de fazer uma distinção entre aproximação e erro.
Dizer que π = 3 é uma aproximação ou é um erro?

Como tudo na engenharia, depende. Se você quer construir um reator
nuclear, é um erro. Se está fazendo o primeiro esboço de uma cadeira, é
uma aproximação (bem grosseira, mas enfim).

Engenheiros não são físicos. Os cientistas que lidam com a ciência na
sua forma mais pura estão tentando entender o universo. Para eles, toda
aproximação é um erro perigoso, principalmente se levarmos em conta as
escalas (geralmente muito pequenas). Uma casa decimal faz uma diferença
enorme quando se quer saber a massa de um átomo. A ciência busca a
verdade; portanto, quanto mais informações tivermos, quanto mais exato
formos, mais próximos ficamos da verdade.

É por isso que se encontram tabelas com valores de π, da constante
universal dos gases, da constante de Planck etc com inúmeras casas
decimais. A maioria desses números, aliás, tem infinitas casas decimais.
As tabelas são impressas com a maior quantidade disponível de
informação. É impossível medir ou calcular uma grandeza que tem
infinitos dígitos; só para começar, precisaríamos de um intervalo de
tempo infinito para expressar esse número (ou de infinitas folhas de
papel para imprimi-lo).

Por que então os engenheiros não usam esses recursos? Por que não usar o
valor mais exato possível? Por que simplificar?

Algo que aprendi na faculdade é que engenheiros lidam com escassez de
tempo, de material, de mão-de-obra e de dinheiro. Você quer projetar uma
cadeira (dessas ajustáveis) e quer fazer algumas estimativas. Então você
faz um desenho básico e faz alguns cálculos. O procedimento “exato”
seria sentar e escrever um programa de computador que faça todos os
cálculos, usando valores de π com muitas casas decimais, seguindo as
equações exatas. Isso demanda tempo, que, lembre-se é um recurso
escasso. E, ao final, você descobre que a construção sairia muito cara.

Ou você pode escrever um programinha extremamente simples, com equações
bem simplificadas, com π = 3,14 e descobrir que o construção é muito
cara. O valor é diferente do correto, mas muito provavelmente o preço
sofre maior influência do projeto que das aproximações induzidas. O
tempo gasto num cálculo exato inútil pode ser gasto no reprojeto.

Outro exemplo: ao projetar um sistema térmico (de condicionamento de ar,
por exemplo), o engenheiro precisa calcular alguma propriedade de um gás
(como vapor d’água) a partir da temperatura e da pressão. Ele pode supor
que, nas condições ideais, o vapor se comporta como gás ideal e usar uma
equação simples (lembram dela?). Ou pode usar uma equação de estado
com 10 coeficientes, procurando em livros como calculá-los, escrevendo
um programa para calcular todas as propriedades desejadas e descobrir
que os valores são apenas 10% maiores que se for usada a equação de gás
ideal. E isso é apenas um ponto ao longo do sistema! O usuário do
condicionador de ar nem vai sentir essa diferença.

É claro que, como falei, todos temos bom senso. O nível de cuidado ao
projetar uma lapiseira ou um avião é bem diferente. Estou falando de um
projeto comum.

Portanto, os engenheiros aproximam porque de nada adianta construir um
sistema perfeitamente preciso que custe uma fortuna para desenvolver e
que demore uma eternidade para lançar. Nós unimos o conhecimento
científico com restrições econômicas.

E pode pôr 5 que o resultado final vai ser aceitável.

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Fale-me mais de você

— Fábio, deixa eu te apresentar o Fulano, acho que vocês podem ser bons
amigos.

— Olá, tudo bem? Eu sou o Fábio.

— Prazer, Fábio, eu sou o Fulano. Fale-me mais de você.

Se eu fosse “normal” como a grande parte da população, eu poderia
responder:

— Eu sou engenheiro mecânico.

Ou então, de maneira um pouco mais realista:

— Eu sou estudante de mestrado.

Uma vez, li em algum lugar (e infelizmente vai ser impossível achar a
fonte) que definir quem você é pela sua profissão é querer se
rebaixar
. Sim, eu tenho um diploma de engenharia, e sim, eu faço
Mestrado e um dia (espero) ser Mestre em Engenharia. Mas isso não me
define, e nem é o que eu faço da vida. Eu não sou “Fábio,
engenheiro”. Eu sou “Fábio, aquele cara que… E ah! Além de tudo tenho
um diploma de engenheiro”. É apenas uma das minhas atividades atuais.
Daqui a alguns anos, quando eu não for mais estudante, como vou me
explicar? Vou ter de mudar de história? No momento em que eu receber o
diploma de Mestre vou mudar completamente? Vou de “Fábio, estudante”
para “Fábio, desempregado”?

Não sei explicar por quê, mas, ultimamente, ando eu mesmo me fazendo
essa pergunta. Eu estou fazendo mestrado em engenharia. Tenho uma
namorada, tenho amigos, tenho uma família.

E além disso, quem sou eu?.

Quando eu morrer, como as pessoas vão se lembrar de mim? Se for como
“Fábio, engenheiro”, observe quão pequeno foi meu impacto na vida das
pessoas.

Imagine o seguinte: você está com a vida social perfeita. Casou-se com a
pessoa amada, tem filhos maravilhosos, a família vem visitar sempre, os
amigos estão por perto. Aos 20 anos, você ganhou na loteria, ou herdou
um bom dinheiro, fez investimentos certeiros, algo do tipo. Ou seja,
você não precisa se preocupar em ter um emprego. O que você faz?

Você quer passar os dias vendo novela?

Ou vai se dedicar a uma caridade?

Ou vai realizar um sonho?

(Por falar nisso, qual o seu sonho mesmo?)

Ou vai comemorar de poder oficialmente matar o dia no Facebook?

Ou vai viajar até morrer?

Ou vai abrir um restaurante?

Ou vai escrever um livro?

Pense nisso. O que você realmente gosta de fazer? O que lhe define? Qual
o assunto sobre o qual as pessoas conversam e automaticamente lembram de
você? Algo do tipo “vi um filme e lembrei do João porque ele sempre
conversa sobre isso”.

Eu? Sinceramente não sei.

O que eu sei é que, sem isso, de nada adianta discutirmos muitos
assuntos que já apareceram por aqui. Sim, já falei da necessidade de
estudar produtividade
; mas estudar produtividade para alcançar o
quê
? É necessário discutir o uso de um computador, para que ele nos
ajude a fazer o quê?

Vou continuar em busca da resposta a “quem sou eu?”.

Enquanto isso, fale-me mais de você.

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Notas do autor

Por que não vou escrever sobre as manifestações

Há uma cena no filme “E aí, comeu?”, que é ótima. Afonsinho, o
mulherengo viciado em puteiro e metido a intelectual, quer publicar um
livro na editora do tio. Diante da falta de qualidade da obra, o tio
adverte:

“Você pode até publicar, dinheiro para fazer isso a sua família tem. O
problema é que, quando você publica um livro, ele se torna público”.

Eu sou um estudante de mestrado em engenharia. Eu leio livros, vejo
filmes e escuto músicas. Eu vivo no mundo e observo o que acontece. Para
muitos desses assuntos eu tenho uma opinião, e a melhor maneira de
clerear os meus pensamentos é escrevê-los. Às vezes, surge um texto
que acho que vale a pena ser compartilhado, porque talvez outra pessoa
tenha tido a mesma reflexão que eu tive e gostaria de ler a opinião de
outra pessoa. Mas se for para criticar algo, que seja com
responsabilidade; minha proridade é contribuir com o debate positivo
de ideias.

Na semana passada, tivemos uma greve dos trabalhadores do transporte
coletivo aqui em Florianópolis. Eu cheguei a escrever um texto bastante
crítico que eu planejava publicar hoje. Porém, logo em seguida
explodiram as manifestações pela Tarifa Zero em São Paulo (e logo em
seguida em outras cidades). Esses dois acontecimentos (bastante
distintos, mas ambos relacionados com o problema do transporte público
no Brasil), provocaram uma avalanche de pensamentos em mim. Eu passei o
fim de semana pensando se deveria ou não usar FabioFortkamp.com para
publicar algo sobre isso, ou se deveria continuar com minha intenção de
criticar a greve. Fiquei pensando se quero usar este blog como espaço de
discussão de política.

E a resposta é: não, não quero que FabioFortkamp.com se transforme
num blog sobre política.

O que eu, um mero estudante de Florianópolis, posso escrever que
acrescente às muitas discussões já existentes contra ou a favor das
manifestações? Algumas pessoas com que com conversei têm opiniões das
mais diversas, mas não tem ideia do que afinal se está reinvindicando, e
quer apenas fazer barulho. Outro grupo, mais reduzido (e composto pelos
meus amigos mais inteligentes) tem posições definidas e argumentam com
racionalidade. Pois bem: o primeiro grupo pode ser influenciado por mim,
mas será que quero influenciar alguém que sequer lê jornal? O segundo
grupo de pessoas tem opiniões formadas com base em argumentos muito
melhores que aqueles que posso escrever, então sobre esses eu não tenho
nenhum poder. Vou escrever para quê, então?

O que está acontecendo no Brasil é grande, e, independente da minha
opinião, torço muito para que o Brasil melhore com esse movimento (e que
a polícia não aja com tanta violência nos próximos atos.)

Existem pessoas que estão lá no meio do protesto, lutando por uma causa,
e pessoas que se sentem prejudicadas pelas ruas bloqueadas. Existem
jornalistas feridos e jornalistas que defendem a ação da polícia.
Existem os grandes jornais e revistas e os sites independentes. Esses
grupos tem mais embasamento para discutir essa questão que eu; tiveram
contato com o protesto, têm mais disposição para pesquisar sobre o
assunto e têm mais coragem para tornar públicos suas opiniões e relatos.
É a essas pessoas que vou recorrer quando quiser me manter informado, e
recomendo aos meus leitores que façam o mesmo.

E, se você concordar com as manifestações (depois de se informar com
responsabilidade), participe.

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Como Usar um Computador

Alex Payne publicou em 2008 um texto excelente sobre o que ele chama
de computing happiness, o que eu traduzo como “felicidade na
computação”. O título pode parecer estranho, já que o pensamento usual é
associar a felicidade a momentos em que estamos longe do computador:
lendo um livro, viajando com a pessoa amada, curtindo com os amigos,
passeando com a família. Concordo com tudo isso, mas, a partir do
momento em que admitimos que precisamos usar um computador, seja como
ferramenta de trabalho e seja como facilitador da nossa vida pessoal, é
melhor que o façamos de uma maneira que seja a mais agradável possível.
É quando “essa merda desse computador não para de travar” se torna menos
frequente que “esse programa é muito bom, como eu só descobri ele
agora?”. Você incorpora o uso mais consciente do computador (um
conceito que se tornou fundamental na minha filosofia de vida) na sua
rotina e fica alegre com isso. O que deveria ser um trabalho acabando se
tornando uma atividade que você faria normalmente, porque você descobriu
programas ou técnicas que facilitam muito a tarefa em mão. Imagino que
seja isso que ele quis dizer com happiness.

O texto é simples e curto mas, sem exagero, é um dos mais marcantes que
li. Desde que tive contato com ele (no começo desse ano), passei a
questionar cada vez mais o meu uso do computador. O que estou fazendo é
necessário? E se é, estou fazendo da melhor maneira possível?

Recomendo fortemente que você leia essa lista e reflita sobre o assunto.
Aqui, agrupei os itens nas suas principais ideias, e dou a minha opinião
sobre as mesmas.

Use o software e o hardware certos para cada tarefa, e não mais que isso

Essa é a ideia central do texto. Você não precisa de milhares de apps e
programas, e os que você precisa, você deve usar para a coisa certa. O
seu browser não é o seu sistema operacional; ele serve para acessar
páginas na Web e alguns web apps. Vejo muita gente com o Chrome ou o
Firefox com mil extensões, que prometem fazer tudo, e fico me
perguntando se essas pessoas sabem que existem outros programas, mais
apropriados para cada tarefa.

E tem aquele programa que é a peça de software que eu mais odeio no
mundo, e que você provavelmente adora, que é o Word. Se você tem de
escrever um documento composto apenas de texto, com formatação básica, e
poucas figuras (três é o limite para manter a sanidade mental), ótimo.
Se você tem de colocar figuras com legendas, referências bibliográficas,
equações, e fez isso no Word… eu sinto muito pelos meses da sua vida
que você perdeu reabrindo o Word depois de ele travar, para logo em
seguida ter de rearrumar todas as figuras e suas legendas.

Na mesma linha, você não precisa de um super computador para ver o
Facebook e escutar músicas. Atualmente, laptops já estão bem mais
poderosos e ainda tem o adicional da portabilidade. E como já falei,
não tente usar o seu smartphone para tudo, porque ele existe para
complementar o seu computador tradicional.

Você também não precisa de milhares de periféricos. Um monitor grande,
para ficar mais confortável, um bom conjunto de teclado e mouse, e um HD
para backups. Se for comprar algo diferente, pense bem se realmente
precisa (como aquele leitor de digitais que é super importante porque
você trabalha no meio de agentes secretos).

Use Mac no seu computador e Linux para servidores

Embora eu concorde, reconheço que é muito dependente do gosto pessoal.
Eu já usei Windows, já usei Linux (no desktop) e uso um Mac, e pela
minha experiência, essa é a ordem de usabilidade, do pior para o melhor.

Tenho certeza absoluta que a grande maioria das pessoas usa Windows por
comodismo. Foi o sistema que elas sempre usaram, já estava instalado
quando compraram o computador e o Office funciona (pirateado, com
certeza). É exatamente essa a estratégia da Microsoft, licenciar para um
grande número de fabricantes de hardware de maneira a dominar o mercado.
E essa é também a maior fonte de problemas: a grande diversificação
produziu computadores ruins, com configurações levemente acima das
mínimas e milhares de programas inúteis pré-instalados. Com isso o
sistema se torna pesado, trava, demora décadas para inicializar.

Já tive minha fase de experimentar com algumas distribuições Linux. É
ótimo: existe uma comunidade ativa de usuários, que adora resolver
problemas; existem uma infinidade de opções de sistemas e programas; e é
quase tudo de graça não porque as pessoas não querem pagar, mas
porque os programas são abertos e todos podem modificá-lo (o pagamento é
o tempo e a disposição de contribuir com o código do programa). Por que
eu não uso mais? Quando voltei para o Windows, estava precisando de
alguns programas específicos (estava no fim da faculdade). Agora, com
toda a sinceridade, tenho certeza que, se eu tiver a disposição, eu
migro do Mac para o Linux de novo. É só uma questão de me acostumar com
novos programas. Talvez eu faça isso.

O que me atrai no Mac? Eu comprei um porque queria testar. E o sistema é
rápido, quase não trava, e o hardware é otimizado para aquele software
(já que a Apple fabrica os dois componentes). Sem contar a opção de
excelentes aplicativos, num mercado de softwares muito vibrante. E
claro, ainda há a integração com iPhones e iPads.

No servidor, não há disputa. Tarefas que exigem grande volume de
configurações precisam da versatilidade de um sistema aberto como o
Linux.

Minha sugestão? Se você está satisfeito com o Windows, ótimo. Se não,
tente identificar os pontos que incomodam e teste os os outros sistemas.
Só assim você pode ter uma opinião formada.

Use softwares que você domina e, se necessário, pague para eles.

Como falei acima, se você tem de usar um software que não é livre (i.e.
um software fechado, que apenas os proprietários podem modificar), deve
pagar por ele (para ajudar a sustentá-lo).
Ao mesmo tempo, pagar por algo que você não conhece é arriscado. A
grande maioria dos softwares (pelo menos aqueles que vale a pena usar)
tem versões demo; use, teste, veja se ele vai acrescentar. O tempo de um
mês da maioria dos demos é suficiente. Se gostar, pague, já que ele vai
realmente acrescentar na sua vida. É melhor que uma calça que você tem
de decidir depois de provar num provador apertado, com o vendedor
dizendo que ela ficou ótima em você.

Quando você decidir comprar e usar o software, ótimo. Agora honre seu
tempo e domine-o. Não seja um analfabeto digital. Explore o máximo,
arrisque, pesquise, seja aquela pessoa para quem todos vão perguntar
“como eu faço isso nesse programa?”.

Use formatos abertos

Muitos programas guardam os dados num formato proprietário, que apenas
aquele programa consegue abrir. Evite isso. Depois, se aparecer alguma
alternativa melhor, você tem de continuar usando só porque todos os seus
arquivos estão naquele formato. É como fotos: elas estão em formatos
padronizados, .jpg, .png etc. Você usa então programas que modificam
esses formatos, ou que organizam as fotos de uma ou outra determinada
maneira. Quando você quiser trocar de programa, as fotos estão mantidas.

O formato mais simples possível é o texto puro, plain text do inglês.
É o que se cria em editores de texto (não processadores) como o Bloco de
Notas (no Windows), TextEdit (no Mac), Notepad++, TextMate, vim, Emacs,
Sublime Text, Byword (onde este texto está sendo escrito). Os programas
se diferenciam então pelo que eles podem fazer com o texto: reconhecer
linguagens de programação, executar comandos avançados de editar
múltiplas linhas, substituir múltiplas ocorrências de uma palavra por
outra, criar macros que transformam o texto (tornando maíscula todas as
iniciais, por exemplo), exportar para formatos de publicação como HTML
ou PDF. Mas por baixo disso está o confiável .txt. Se eu quiser trocar
de programa ou mesmo de computador o arquivo está lá, intacto.

Enquanto isso, você está usando o Word 97, e não consegue abrir aquele
maldito .docx que o seu colega lhe enviou.

Conclusões

Você não precisa seguir essas regras, como Alex diz. O que você precisa
é entender qual o seu uso do computador e se questionar se algo precisa
mudar. E então trabalhar para fazer o computador uma ferramenta, e não
um empecilho ao seu trabalho.