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O que você pode fazer?

Já deve estar ficando claro que uma das minhas mais recentes obsessões é a intersecção entre a religião e a produtividade. Como já falei aqui, os momentos em que mais oro, em que mais estou em harmonia com Deus e com minha própria espiritualidade, são justamente os momentos em que mais me sinto produtivo. Isso obviamente não é nenhuma mágica; como um trabalhador do conhecimento, minha mente é meu instrumento de trabalho, então se minha mente está sã (o que se consegue com a prática regular da oração), então meu trabalho vai bem.

A experiência de organizar uma estadia de 6 meses na Dinamarca colocou todos os meus nervos à prova. Eu me considero uma pessoa insensível, mas nesse período de dois meses tive mais crises de choro que todo o resto da minha vida adulta. Claramente, eu precisava de ajuda, e três frentes me ajudaram:

  1. A oração cada vez mais intensa
  2. O tratamento psicológico
  3. A organização mais refinada

O que me supreendeu é que essas três frentes convergiram para o mesmo ponto, a mesma pergunta a ser feita:

O que você pode fazer?

Quando você aprende a se perguntar e a responder a essa pergunta, a nossa vida só tem uma direção — de melhora.


Já falei em outro texto que sou ligado a um movimento da Igreja Católica chamado Oficinas de Oração e Vida. Na ocasião do falecimento da minha avó, as Oficinas me ajudaram a me levantar da queda. Nas Oficinas se ensina a orar, e orando se aprende a viver. Entre as muitas modalidades de oração que se ensinam nas oficinas, a mais transformadora (para mim, pessoalmente) é a Oração do Abandono, cuja ideia é tão simples quanto difícil: para um dado problema, aja até onde conseguir agir, mas aceite que a partir você não pode fazer mais nada, e se entregue (abandone-se) nas mãos do Pai.

O fundador das Oficinas, Frei Ignácio Larrañaga, dá o perfeito exemplo de Maria de Nazaré: quando o anjo anunciou que ela, uma pobre jovem que nem casada era, ficaria grávida por ação de Deus, que respondeu ela? “Faça-se a Tua vontade. De acordo.” (parafraseando Frei Ignácio em um de seus brilhantes textos)1. Trinta e três anos depois, ao pé da Cruz, não se vê em nenhum dos Quatro Evangelhos a cena de Maria desesperada, ou tentando lutar com os soldados romanos. Ela simplesmente aceitou o inevitável.

Exemplo mais mundano e prático, relacionado à minha vida: uma das etapas mais estressantes da organização do Doutorado Sanduíche foi a busca por moradia. O mercado de imóveis na Dinamarca, eu logo aprendi, é extremamente desbalanceado para o lado dos proprietários: é muito mais fácil para um senhorio achar inquilinos que para inquilinos acharem moradia. Os meses de preparação para a viagem envolveram então muitos emails sem resposta sobre anúncios em sites de classificados, a tal ponto que a duas semanas da viagem ainda não tínhamos onde morar. Mas o que eu podia fazer? Posso mandar mais alguns emails. E o que mais? Posso contratar um serviço de relocação para estrangeiros, para que eles ajudem na procura (pagando por isso, naturalmente). E o que mais? Posso solicitar ajuda da Universidade lá. E o que mais? Posso contactar meus futuros colegas para ver se eles sabem de alguma coisa. E o que mais? Posso procurar em grupos do Facebook se alguém está anunciando alguma coisa. E o que mais? Nada — e é a partir daí que eu me abandono. Eu já fiz tudo que podia fazer, tudo que estava ao meu alcance, agora só posso depositar minha esperança no Pai e esperar por uma resposta positiva. E Ele cumpre; na última sexta-feira finalmente assinei o contrato de aluguel para nossa futura residência em terras nórdicas.

Um erro de percepção comum na Oração do Abandono é achar que é pura desistência, mas observe no exemplo do parágrafo anterior a quantidade de ações que podem ser tomadas antes de se abandonar. Não é um ato de acomodação, mas de humildade; fazer tudo ao alcance, mas reconhecer que a partir daí nós não temos mais poder. Falei há pouco do falecimento da minha avó; afora ir gritar aos médicos para fazerem alguma coisa, não havia nada a fazer para a salvar a vida dela. Minha querida avó tinha simplesmente chego ao fim da caminhada na Terra, e não há nada ao meu alcance que possa mudar isso. E isso não traz sofrimento, mas paz.


Nos seus textos sobre o Abandono, Frei Ignácio fala que a falta dessa prática leva à loucura. Quantas vezes o leitor se pegou remoendo um episódio passado, pensando “eu não devia ter falado aquilo”, ou “se eu fosse mais organizado, não teria perdido aquele prazo”, ou “deveria ter estudado mais”, ou “que desperdício de dinheiro essa compra”? Agora pare para pensar, e reflita: não é mesmo uma loucura? Se você sai de uma reunião estressado e arrependido de uma frase ruim, já aconteceu, e nada vai mudar isso.

Agora, essas experiências podem ser usadas para o bem, se você transforma esses erros num aprendizado. E é aí que a ajuda psicológica que mencionei me ajudou a me acalmar. Sim, por relaxamento eu perdi a chance de alugar um aparamento e que poderia ter resolvido essa questão há muito tempo; e sim, por desconhecer o processo de visto, minha esposa ainda está esperando o resultado do processo dela dela. Mas como falei, é loucura ficar remoendo isso. É melhor perguntar: que aprendi disso? Resposta: aprendi a ser mais ágil na hora de reservar o apartamento, e a correr mais riscos controlados sem ter 100% de certeza de que o local é bom. Aprendi a ser sempre o mais conservador possível quando se trata de imigração, e que se há um motivo para um país frear a entrada de imigrantes eles vão usá-lo. E muitos outros aprendizados que tento registrar no meu diário para futura referência.

Mas veja como isso se conecta com a Oração do Abandono. Esses “aprendizados” que a minha terapeuta sugeriu enxergar valem apenas para ações futuras, e eu continuo sem poder alterar o passado. Mas o ato de refletir sobre as coisas ruins que acontecem pode ajudar na parte de “fazer o que posso fazer” do Abandono, para que no futuro eu preciso recorrer menos a Deus nas horas de desespero, e possa agradecê-Lo mais pelas coisas boas.


O Abandono tem duas partes, portanto. Diante de um problema, você precisa analisar se ele tem solução. Caso negativo, já disse, não há o que fazer, a não ser aprender o que pode ser feito diferente da próxima vez, e entregar-se à vontade de Deus. Mas caso positivo, é hora de agir.

Já mencionei em um post anterior que essa mesma experiência de ir para a Dinamarca, com muitos prazos interrelacionados, fez-me questionar o meu sistema de produtividade. A terceira parte da busca por ajuda que mencionei no começo do texto foi então justamente tentar aprender como posso melhorar, perder menos prazos e ficar mais relaxado. E achei que uma boa maneira seria ler analiticamente a nova edição de um livro que já resenhei aqui, A Arte de Fazer Acontecer. E logo no primeiro capítulo já notei um paralelo muito forte entre o método GTD (tema do livro) e o Abandono, que é a pergunta do título desse texto: o que você pode fazer?

Neste primeiro capítulo de A Arte de Fazer Acontecer, aprendi que o método tem um cerne básico:

  1. identificar o que você quer fazer ou alcançar
  2. definir o que você poder fazer, de imediato
  3. tirar essas coisas da sua cabeça e organizar num sistema que você possa consultar

O segundo passo é a chave. Um dos conceitos mais brilhantes do método é o da próxima ação, que é definir a próxima coisa concreta que você pode fazer em direção a um resultado. No caso da busca por moradia que citei antes, “mandar emails sobre moradia” é certamente muito abstrato (por onde começo?), mas “entrar no site X e ver os novos anúncios de moradia” é algo bem mais palpável. E de fato, uma mudança que tomei nas últimas semanas foi definir ações mais granulares, tanto nos meus cartões no Trello quanto nas minhas listas no Todoist, de maneira que a cada vez que eu consultar esses aplicativos eu tenha uma visão muito clara de todas as coisa que eu posso fazer. E não por acaso, nessas últimas semanas os preparativos para viagem aceleraram, ao mesmo tempo em que meus projetos pendentes aqui no Brasil foram sendo concluídos.


A grande moral da história é que, por mais responsabilidades e interesses que tenhamos, cada um de nós é uma pessoa, individual, e não “múltiplos eus”. Eu não sou cristão apenas aos domingos das 18:00 às 19:00, quando vou à Missa. E também não sou um estudante de doutorado de segunda à sexta durante o horário comercial, e estudante de produtividade aos fins de semana. Tudo está interligado. Eu tento aprender a me organizar melhor para que a minha vida seja mais suave e eu consigo cumprir meus objetivos. Se acontece algo de ruim, eu peço ajuda a Deus ou simplesmente me abandono n’Ele. Se acontece de bom, eu Lhe agradeço. Se é uma semana cheia de compromissos na Igreja, como no caso da Semana Santa, eu uso da organização para garantir que haja tempo para eu ir aos serviços.

Esse é um daqueles textos que eu escrevo porque precisam ser escritos. Essas coisas de que falei aqui me ajudam, e espero que possam ajudar mais gente.


  1. Se a essa altura o leitor já estiver interessado pelas Oficinas, procure a sua paróquia e veja se as Oficinas já se instalaram aí.