O primeiro rascunho de qualquer coisa é uma merda.
É difícil haver uma frase que tenha causado tanto impacto na minha vida
profissional e que seja tão verdadeira.
O perigo de escrever e editar ao mesmo tempo
Na escola, as professoras de Redação (perdão, Produção Textual), sempre
advertiram: “faça um rascunho, e só depois passe a limpo”. Eu, bom aluno
(leia: puxa-saco) que sempre fui, seguia religiosamente esse conselho.
Fazia o rascunho (a lápis) e depois passava a caneta. E o processo,
embora funcionasse, parecia ineficiente. Na minha cabeça, eu demorava
tanto tempo que, quando eu terminava o rascunho, o texto já estava bom.
Parecia que eu poderia ter escrito o texto todo a caneta. O que havia de
errado?
Simples: o meu rascunho era muito bom.
Eu escrevia um parágrafo e editava. Parava, achava que ficava ruim, e
melhorava, e passava para o próximo. Voltava e mudava um trecho. Assim
por diante. Claro, no final, o texto já estava pronto. Passar a caneta
era só perda de tempo.
Isso é altamente ineficiente. Um rascunho é um rascunho, não é para ser
editado antes de ficar pronto. Muito melhor seria escrever o texto todo,
em uma só vez. Quando eu tivesse uma noção do que o texto final seria,
ficaria muito mais fácil consertar alguns trechos. Hoje em dia, eu
realmente faço rascunhos (mas não mais a mão). A primeira versão dos
textos de FabioFortkamp.com são deprimentes (não que as versões
finais sejam muito boas). Quando eu vejo uma tela em branco, é uma
oportunidade para descarregar completamente minhas ideias. “Parar e
pensar” é algo que não me permito.
Num dia desses, por exemplo, eu sentei e escrevi um capítulo da minha
Dissertação. Um capítulo inteirinho, enquanto esperava uma simulação ser
completada (se você acha que seu computador é lento ao visualizar aquele
PowerPoint, experimente trabalhar com solução de equações diferenciais
acopladas). “Uau, Fábio. Se a sua dissertação deve ter em torno de 5
capítulos, como usual, quer dizer que você escreveu 20% da sua
Dissertação em uma manhã? Qual o seu segredo?”
O meu segredo é que esse capítulo está uma merda. Não é a versão final,
que vai ser defendida. Se eu mostrar isso para o meu orientador, ele vai
rir de mim. É um rascunho. Tem erros de português, erros de gramática,
frases mal construídas, referências não conferidas. Mas ele está ali. Eu
agora tenho claro o que eu preciso escrever, sei das coisa que preciso
abordar. Depois ele vai ser reescrito. E aí é que está a mágica: o tempo
de fazer um rascunho rápido, mais o tempo de reescrita, é menor que eu
tempo de escrever e apagar parágrafo por parágrafo (já que não há tantas
interrupções). Além de que o texto final fica muito melhor.
Essa ideia pode ser extendida a muitos aspectos da nossa vida. É um
conceito bastante comum e que chamo de desenvolvimento iterativo (não
confundir com interativo).
Estimar e refinar
A melhor definição de iteração vem de um (excelente) professor meu:
Um problema iterativo é aquele cuja solução depende da solução.
Esse conceito é bastante comum na computação e na matemática. Por
exemplo, se você quer achar a solução de x = cos(a), onde a é
conhecido, é fácil. Você sabe a, calcula o cosseno e diz que x é
esse valor. E qual a solução de x = cos(x)? Qual o número que é igual
ao seu cosseno?
Como não existe solução algébrica (não existe nenhuma “fórmula”
fechada), nós usamos um procedimento iterativo. Você começa com um
resposta errada; você sabe que tem de ser entre 0 e 1 (pela definição de
cosseno). Suponha então que seja 0,5, o ponto médio. O cosseno de 0,5 é
0,877583. Esses valores são diferentes, então 0,5 não é igual ao seu
cosseno. Você tenta de novo, usando o novo valor (0,877583) como
estimativa. O cosseno disso é 0,639012, portanto esse novo número também
não é igual ao seu cosseno. Você tenta com o resultado mais recente,
cujo cosseno é 0,802685. E assim por diante, até chegar a 0,739085, cujo
cosseno é… 0,739085. Resolvido.
Essa técnica de estimar e refinar é extremamente usada nas ciências
exatas (embora existam muitas maneiras de refinar um resultado, e a que
eu mostrei não é a mais eficiente), e é a única maneira de resolver
muitos problemas (pelo menos com o nosso conhecimento matemático atual).
Muitas vezes é a maneira mais fácil (lembrando que todos esses cálculos
são resolvidos por um computador em um tempo menor que o que você leva
para dizer “não entendi nada”).
Na nossa analogia literária, você só pode escrever um texto bom ao menos
que saiba o que quer dizer. Mas para saber o que dizer, você tem de ter
escrito alguma coisa (a não ser que seja um gênio que tem o texto
pronto na cabeça). Assim, você começa com uma versão preliminar, e vai
refinando. É muito mais fácil que escrever algo notável do zero.
Vale para qualquer trabalho criativo – e sim, matemática é uma área que
demanda criatividade.
Um outro exemplo pessoal: o meu tema de Mestrado envolve alguns cálculos
termodinâmicos não muito simples. A equação de estado é complicada, o
sistema está sempre em movimento, existe transferência de energia e
massa e mudança de fase. E o meu primeiro cálculo ignorou quase todas
essas complexidades. Os gases são ideais, a temperatura é constante, o
sistema está parado. Consigo calcular o que me interessa? Consigo. E se
calcular a temperatura (usando uma equação apropriada), em vez de
considerar constante, consigo? Consigo, porque os erros da primeira
parte foram todos corrigidos. E se usar uma equação de estado melhor? E
se considerar a velocidade? E se…
A cada refinamento, a cada iteração, o meu trabalho está melhor porque
eu já eliminei todos os defeitos da versão simplificada. Se eu tivesse
começado com o problema completo, no primeiro erro de cálculo eu não
saberia nem onde procurar o erro.
Eu não tenho experiência com isso, mas consigo imaginar que todo
arquiteto começa uma casa como um quadrado com uma porta. Um músico
começa o novo hit com dó-re-mi. Um advogado começa o seu documento com
“Querido juiz, meu cliente é inocente.”. E por aí vai. O importante é
ter uma primeira versão, um primero rascunho.
O leitor não concorda?
2 respostas em “O Primeiro Rascunho”
[…] plausível. Fazer ciência é um processo criativo, e criatividade é iterativa por natureza. Você começa com um rascunho e vai […]
[…] plausível. Fazer ciência é um processo criativo, e criatividade é iterativa por natureza. Você começa com um rascunho e vai […]