Não sei se o nobre leitor ou leitora já lidou alguma vez com
programação de computadores, mas eu já. Quando morei na Alemanha, meu
trabalho como estagiário em um instituto de pesquisa era criar um
programa de computador que simulava um refrigerador. O usuário digitava
alguns valores numa planilha, basicamente as condições de trabalho do
refrigerador (quão gelado deveria ficar o refrigerador e quão quente era
o ambiente, entre outras coisas) e meu programa calculava as pressões e
temperaturas dentro do refrigerador. O engenheiro então projetaria
equipamentos que suportassem esses valores.
Não existe nada de extraordinariamente complicado nesse problema.
Milhares de pesquisadores já formularam as equações que descrevem um
sistema de refrigeração. Minha tarefa era procurar em artigos e livros a
equação que mais se encaixa, escrever o programa dando instruções para
ler a planilha, calcular os parâmetros e resolver as equações. Depois,
basta rodar alguns testes e comparar com valores medidos em laboratório.
Mas coisas podem dar errado. O modelo é tão complicado que o programa
fica tentando resolver a equação infinitamente, sem nunca chegar a
alguma solução. Ou um conjunto misterioso de parâmetros faz o programa
travar. Ou o programa calcula alguma temperatura (em Kelvin) negativa.
Ou a pressão mínima é maior que a pressão máxima. Ou a Segunda Lei da
Termodinâmica é violada.
Tudo, claro, erro meu. Um erro de digitação, ou a escolha da equação
errada, ou a escolha de um método de solução de equações errado. É fácil
se perder à medida que o programa vai crescendo.
O que quero dizer é que programar dá trabalho. Eu sou engenheiro
mecânico, e não tenho nenhuma educação formal em programação ou
computação. Tive uma disciplina de programação da faculdade, mas foi
aquele exemplo clássico de um departamento dando aulas para outro,
achando que o outro nunca vai aprender, que engenheiro mecânico tem de
lidar com graxa e não com algo tão sofisticado quanto um programa de
computador. Não aprendi nada, basicamente. Tudo que sei aprendi fazendo.
Ainda assim, meu programa ficou razoavelmente bom, e meu chefe de lá
mandou um email meses depois dizendo que ele estava sendo bastante útil.
Eu me considero uma pessoa educada, mas depois de todo esse trabalho, se
alguém se oferecesse para comprar meu programa por 99 centavos de dólar,
eu mandaria essa pessoa à merda.
Temos que mudar nossa mentalidade de não querer pagar por software.
Achamos que um programa não é coisa física, que a internet está aí para
“democratizar a informação”, que o culpado é quem colocou no Pirate Bay,
que um software é um artigo de segunda linha.
Produzir um software dá trabalho.
A atual economia de apps por $0,99 na App Store (não posso falar do
ecossistema Android porque não possuo um aparelho desse tipo) não é
sustentável, claramente. Se eu tivesse de vender o meu programa por
$0,99, eu faria uma de duas coisas: ou me preocuparia cada vez menos
(para que dedicar meu tempo para algo que vai me render $0,70,
descontada a fatia da Apple), ou simplesmente abandonaria o projeto e
procuraria outra coisa mais rentável. Observe os apps que você comprou
de graça ou por 99 centavos e me diga que isso não aconteceu.
Você paga R$50 por um livro que vai ler uma vez e nunca mais, paga
R$200+ por uma calça que não pode usar muitas vezes para não repetir,
paga R$ 50 por um rodízio de sushi, para R$1000 por um celular, mas
acha um app de $10 é muito caro?
Precisamos valorizar os desenvolvedores que estão nos ajudando.
Quando eu comecei a tomar conta da importância disso, a coisa mais
benéfica que aconteceu foi que eu parei de comprar apps inúteis. Em vez
de baixar um app de graça ou por $0,99 sem pensar, quando eu quero
comprar um programa de $10 ou $20, seja para iOS ou o OS X, eu paro e
penso. Esse app vai me ajudar? Eu vou usar quase todo dia?
Ultimamente, o resultado foi positivo. Apps como Notesy, que me
permite visualizar e editar minha notas (e onde estão guardadas muitas
ideias para próximos posts); Byword, onde escrevi o meu último
post, aliás totalmente escrito e publicado em um iPad; Drafts,
ótimo para capturar pequenas notas; 1Password, um gigante que me
permite gerenciar minhas senhas e minhas licenças (valioso demais
quando tive de formatar meu computador); Taskpaper, para gerenciar
minhas tarefas; Instapaper, para guardar páginas que acho
interessante e quero ler mais tarde, quando tiver tempo.
Em todos esses aplicativos, paguei mais que $0,99, e todos são
extremamente úteis. Nesse momento de minha vida, esse site é muito
importante, então ter um bloco de notos poderoso (Notesy) e um editor de
texto (Byword) comigo, a todo momento, é igualmente importante para mim.
Eu sou constantemente atormentado por ideias, então ter um aplicativo
que me permite registrá-las rapidamente (Drafts) é importante para mim.
Poder gerenciar minhas tarefas com o Taskpaper, entre meu mestrado, esse
site, coisas que preciso comprar, outros projetos pessoais (mais sobre
isso num momento futuro), é importante para mim.
E como é importante, eu me recuso a confiar essas tarefas a um programa
que é grátis (e que logo vai ser abandonado ou, pior, abarrotado de
anúncios) ou vendido a 1 dólar.
Nada disso que eu falei é novo. Na verdade, minha pretensão inicial ao
começar esse texto era fornecer uma introdução a uma série de leituras
que acho essencial que o leitor tenha para pensar melhor sobre o
problema.
Pode começar lendo essa espetacular série sobre a economia da App
Store. Pode continuar lendo a análise de Lex Friedman na Macworld, a
opinião de Marco Arment, desenvolvedor do Instapaper sobre o
assunto (que cita os outros dois textos) e a análise de Tulio
Jarocki sobre esse último artigo, que praticamente me inspirou a
escrever isso. Todas essas pessoas escreveram sobre o mesmo assunto
(praticamente sobre a mesma ideia), de maneira muito superior. Estou
tentando apenas chamar a atenção para o problema, dar um exemplo pessoal
(por favor, não me considero nem de longe um programador!) e apresentar
essas ideias em Português (rode uma pesquisa por “pagando por software”
e “paying for software” e tire suas conclusões).
Num próximo post falarei sobre os serviços web que supostamente também
são de graça.
5 respostas em “99 centavos”
[…] o fim do preconceito contra determinadas profissões, a valorização do mundo acadêmico, e o consumo mais racional de software no Brasil. Também escapei por vezes dessa forma de ensaio, onde defendo alguma ideia central e construo os […]
[…] interface é simples, a App Store estimula o desenvolvimento de apps pagos (e os leitores já sabem o que penso sobre isso) , sincroniza automaticamente com PC, OS X ou pela web (via iCloud), e como todos os programas são […]
[…] escrevi que a nossa cultura de não pagar nada por software não se sustenta. Destaquei dois pontos […]
[…] existem uma infinidade de opções de sistemas e programas; e é quase tudo de graça não porque as pessoas não querem pagar, mas porque os programas são abertos e todos podem modificá-lo (o pagamento é o tempo e a […]
[…] tem algo a dizer ou mostrar, faça-o. É possível criar um blog de graça (embora você já saiba o que penso da qualidade de produtos grátis). Até uma página no Facebook pode servir para seus propósitos (apenas leve em conta que, assim […]