Você provavelmente foi enganado a vida toda.
Se o leitor ou leitora teve aulas de Física em algum momento da vida, deve ter ouvido falar do Ciclo de Carnot, o ciclo “ideal” de uma máquina térmica. Um motor de Carnot funciona da seguinte forma: aprisionamos uma quantidade de um gás dentro de um cilindro, como o de um motor automobilístico, que pode se expandir e contrair para movimentar um pistão (o leitor pode visualizar uma seringa, se ajudar). Esse gás inicialmente está em um volume pequeno e em uma temperatura muito alta (bastante comprimido). Se soltarmos o pistão, o gás vai se expandir e resfriar; para evitar que isso aconteça, colocamos esse cilindro em contato com um grande corpo quente na mesma temperatura do gás, que então vai manter a temperatura constante enquanto este se expande – mas aí vem o detalhe: nunca podemos deixar o gás se resfriar, então precisamos fazer isso de maneira infinitamente devagar: deixamos o gás quente empurrar o pistão por uma distância de um pentelhésimo, esperamos estabilizar a temperatura entre o gás e o corpo quente; e então repetimos o processo. Fazemos isso até atingir a variação de volume que quisermos (e que o cilindro comporta). Em seguida, envolvemos o cilindro com um material isolante e deixamos o gás quente (lembre-se, não deixamos a temperatura abaixar) se expandir até atingir um outro limite de temperatura. Nesse outro nível, agora invertemos os processos: nós comprimimos o gás frio de maneira infinitamente devagar para reduzir o seu volume sem aumentar a temperatura (pondo-o em contato com um grande corpo frio na mesma temperatura), e então isolamos o cilindro e comprimimos o conteúdo até atingir o volume e temperatura iniciais.
Como toda máquina térmica, um motor de Carnot absorve calor de uma fonte quente de energia, e isso na prática é feito com a queima de algum combustível em uma câmara de combustão ou uma fornalha. Quanto mais calor a máquina consome, mais combustível precisamos fornecer (e mais caro se torna o processo). Parte desse calor se transforma em movimento útil: o gás se expande em duas etapas (primeiramente de maneira isotérmica, com temperatura constante, e depois de maneira adiabática, onde o cilindro está isolado), e esse movimento pode ser usado para acionar alguma outra máquina (como uma simples roda que faz o carro andar); só não podemos esquecer que precisamos “pagar” parte desse trabalho de volta nas etapas de compressão. A diferença entre o calor fornecido e o trabalho líquido obtido é o calor que é rejeitado para a fonte fria. Chamamos de eficiência térmica a percentagem de quanto obtemos de trabalho útil, relativo ao quanto fornecemos de calor.
O Teorema de Carnot, consequência da Segunda Lei da Termodinâmica, estabelece que, dados dois limites de temperatura quente e fria, o ciclo de Carnot é o ciclo mais eficiente possível, entre todos os ciclos que se encaixem entre essas temperaturas.
Isso é um fato, e eu não discuto. O que me preocupa é ver os futuros engenheiros e engenheiras do Brasil analisar tudo que eu escrevi até agora e achar que o Ciclo de Carnot é o “melhor” ciclo e que então precisamos projetar todas as máquinas térmicas para seguirem o Ciclo de Carnot a todo custo.
Achar que o Ciclo de Carnot é o melhor ciclo esbarra naquilo que um grande professor meu chamava de Primeira Lei da Engenharia: depende. O Ciclo de Carnot é o ciclo mais eficiente – mas tudo que você quer é eficiência? Essa é a única métrica relevante?
O Ciclo de Carnot tem problemas e não é interessante como modelo de máquina térmica por três motivos:
1. O Ciclo de Carnot não consegue fornecer potência
Essa frase pode parecer absurda e mentirosa, e conseguir entendê-la é um grande passo para dominar engenharia de fato.
Quando descrevi o Ciclo de Carnot anteriormente, eu descrevi um ciclo. Começamos em um ponto e terminamos no mesmo ponto. Em seguida, completaríamos o mesmo ciclo, em seguida outro, e assim indefinidamente. Em cada ciclo, para cada unidade de calor, um motor de Carnot entrega a maior quantidade de trabalho possível.
Em Engenharia, precisamos ser práticos. E um detalhe prático que vejo poucas pessoas discutirem é: quanto tempo demora para completar um ciclo? Isso não é um detalhe meramente teórico: o motor do seu carro completa milhares de ciclos por minuto (os “RPM” que o tacômetro mostra), e é isso que permite o carro se movimentar e acionar todos os equipamentos veiculares. Um ciclo “perfeito” que demora um tempo infinito para completar não serve de nada – e é justamente isso que o Ciclo de Carnot faz. Reparem na descrição do início desse texto: para se expandir sem alterar a temperatura, o pistão se move infinitamente devagar, e portanto demora um tempo infinito – para completar apenas um processo.
O Ciclo de Carnot é um ciclo de potência nula porque entrega uma quantidade finita de trabalho em um tempo infinito [1]. Se você construísse um motor de carro de Carnot, você veria o pistão se movendo muito devagar. Para se mover de Florianópolis a Joinville, ele é muito econômico – mas o universo implodiu antes de isso acontecer.
2. O Ciclo de Carnot exige equipamentos ou processos impossíveis
A leitora pode estar tentada a achar que existe uma maneira de evitar o problema acima, que seria substituir o sistema pistão-cilindro por um sistema baseado em compressores e turbinas, que funcionam de maneira contínua. Se você alterar a rotação do compressor, em tese você consegue acelerar o escoamento do fluido e abreviar o tempo de completar um ciclo. As etapas de transferência de calor isotérmicas agora vão acontecer em trocadores de calor, como condensadores e caldeiras de usinas termelétricas; só que, para evitar a diferença de temperaturas entre as fontes e o fluido, o trocador precisa ter uma área infinita, que além de ter um custo infinito, continuam a requerer um tempo infinito para o fluido escoar pelos seus tubos. A potência continua a ser nula.
Vamos por um momento ignorar isso e assumir que a temperatura só precisa ficar constante, podendo ser diferente da temperatura da fonte quente; assim, não precisamos de uma área infinita. Essa constância pode ser alcançada com processos de mudança de fase (evaporação e condensação), que são comumente empregados em usinas termelétricas. Considere um Ciclo de Carnot e um Ciclo de Rankine (o ciclo das usinas termelétricas) simples, ambos delimitados pelos mesmos limites de temperatura:

Graficamente, pode-se ver que o Ciclo de Rankine tem uma área maior (o trecho 1-2-B-A-1), e portanto consegue mais potência. Vamos estimar que o Ciclo de Carnot entrega metade da potência do Ciclo de Rankine – a questão é que ele precisa de menos da metade do calor, sendo portanto mais eficiente.
A leitora astuta deve ter percebido que há um jeito de fazer o Ciclo de Carnot ser mais potente:

O problema é o processo B-C: precisamos transferir calor para a água, que escoa continuamente, enquanto a sua pressão abaixa – e não podemos deixar a temperatura mudar. Isso não pode ser feito com a tecnologia atual. Um ciclo ideal que não pode ser implementado não tem valia alguma em Engenharia.
3. O Ciclo de Carnot requer uma variação de volume absurda
Vamos voltar ao sistema pistão cilindro. O Ciclo de Carnot em um sistema fechado segue o ciclo 1-2-3-4-1 mostrado abaixo:

O problema desse ciclo é que, lembremos, temos duas variações de volume. A variação de 1 para 2 geralmente é controlada, mas a de 2 para 3 explode. Eu fiz algumas contas: se durante o processo 1-2 o volume dobra, durante 2-3 o volume aumenta em cerca de 30 vezes – o que dá um aumento total de cerca de 60 vezes. Em comparação, motores Diesel muito grandes têm uma variação de volume de cerca de 20.
O que podemos aprender com o Ciclo de Carnot
Talvez não tenha ficado claro, mas eu não tenho nada contra o Ciclo de Carnot. Ele é um modelo teórico interessante, e sempre começo as minhas disciplinas falando dele. Em particular, o seu estudo nos leva a focar em perdas. Se o ciclo de Carnot é maximamente eficiente porque a transferência de calor é isotérmica, o fato de termos que aquecer a água fria até se tornar um vapor quente para movimentar uma turbina é um preço que temos de pagar para poder criar um ciclo factível. Se a etapa seguinte precisa ser adiabática para ser eficiente, então cada perda de calor na turbina – ou na tubulação que leva vapor à turbina – é uma perda de potência.
Aprender a identificar esses detalhes relevantes nos faz melhores engenheiros.
O que podemos aprender com esse post sobre o Ciclo de Carnot
Na minha tenra adolescência, eu fiz um curso de fotografia, e o instrutor fez a revelação de que, para fazer fotos melhores, nós precisamos pensar.
Repetir roboticamente que o Ciclo de Carnot é um ciclo ideal nos impede de ver esses detalhes que são importantes. Focar na eficiência nos previne de pensar sobre potência e utilidade dos motores. Conhecimento superficial não conta.
No seu campo, que tipo de conhecimento automático o leitor anda assumindo que pode ser re-avaliado para melhorar a qualidade do seu trabalho?
Referências
[1]: Curzon, F. L; Ahlborn, B. Efficiency of a Carnot Engine at Maximum Power Output. American Journal of Physics 43, 22 (1975). doi: 10.1119/1.10023